O que é e quais os tipos de hemofilias existentes?
Existem vários fatores da coagulação no sangue, que agem em uma sequência determinada. No final dessa sequência é formado o coágulo e o sangramento é interrompido. Em uma pessoa com hemofilia, um desses fatores não funciona. Sendo assim, o coágulo não se forma.
Geralmente, os sangramentos são internos, ou seja, dentro do seu corpo, em locais que você não pode ver, como nos músculos. Podem também ser externo, na pele, provocado por algum machucado, aparecendo manchas roxas ou sangramento. As mucosas (como nariz, gengiva, etc.) também podem sangrar.
Os sangramentos podem tanto surgir após um trauma ou sem nenhuma razão aparente.
Imediatamente após a secreção do fator VIII, o heterodímero interage com o fator de von Willebrand que atua como carreador do fator VIII durante sua circulação no plasma. O fator VIII, ligado ao fator de von Willebrand, terá uma meia vida que varia de 12–15 horas. O fator VIII é ativado pela trombina e pelo fator
- Ambas as proteases clivam a molécula de fator VIII
A ativação do fator VIII reduz drasticamente a afinidade com o fator de von Willebrand. O fator VIII ativado juntamente com fator IX ativado, fosfolípides de membrana carregados negativamente e íons cálcio formam o complexo tenase, que por sua vez, atua enzimaticamente sobre o fator X convertendo-o em sua forma ativada.
O fator X ativado participa da conversão da protrombina em trombina juntamente com fator V ativado e íons cálcio (complexo protrombinase). A trombina é a enzima chave da cascata de coagulação que, em última instância, converterá fibrinogênio em fibrina. Uma vez que o fator VIII ativado tenha desempenhado seu papel na cascata da coagulação, este é rapidamente inativado. O mecanismo exato desta inativação sob condições fisiológicas ainda é desconhecido.
Tipos de Hemofilia
A hemofilia é classificada nos tipos A e B. Pessoas com Hemofilia tipo A são deficientes de fator VIII (oito). Já as pessoas com hemofilia do tipo B são deficientes de fator IX. Os sangramentos são iguais nos dois tipos, porém a gravidade dos sangramentos depende da quantidade de fator presente no plasma
-Hemofilia A
Os dados moleculares sobre a hemofilia A demonstram uma grande heterogeneidade de mutações associadas à doença. Entretanto, duas mutações específicas, a inversão do íntron 22 e a inversão do íntron 1, são encontradas em cerca de 50% e 5% dos casos de hemofilia A grave
Figura 1 – Representação esquemática do padrão de herança de hemofilia A
-Hemofilia B
Diversas mutações foram descritas na hemofilia B, incluindo deleções totais ou parciais, mutações missenses, entre outras, resultando na produção diminuída ou ausente de fator IX ou na produção de proteína anormal. O defeito resulta em geração insuficiente de trombina pelos fatores IXa e VIIIa na via intrínseca da cascata de coagulação.
Sintomas
- Sangramentos espontâneos
- Hemorragia excessiva
- Equimoses
- Sangramentos intra-musculares e intra-articulares
- Sangramento constante em mucosas
- Manchas roxas e lesões espontâneas
- Dor forte e restrição do movimento, em casos mais graves
- Dificuldade na formação do tampão plaquetário
- Aumento da temperatura corporal
Impactos na qualidade de vida
Diversos impactos podem ser relacionados à hemofilia, a depender, claro, do grau, condições ou outros achados clínicos relevantes que possam, ou não, interferir na qualidade de vida do paciente com essas comorbidades. Para tanto, pode-se, de modo geral, relacionar os diversos impactos que esta condição podem estar associadas, como:
- Hemorragias Espontâneas e Trauma:
- A ausência dos fatores de coagulação VIII (hemofilia A) ou IX (hemofilia B) leva a hemorragias que podem ocorrer espontaneamente ou após trauma e cirurgias.
- Isso resulta em sangramentos nas articulações (hemartroses) e músculos (hematomas), causando deformidades, dores crônicas e limitações na mobilidade.
- Risco de Complicações Graves:
- Quando não diagnosticada precocemente e tratada adequadamente, a hemofilia pode levar a complicações graves, incluindo danos permanentes às articulações e até mesmo risco de morte.
- Sangramentos internos, especialmente nas articulações, podem causar danos significativos.
- Impacto Psicossocial:
- A necessidade constante de monitorar e gerenciar os sangramentos pode afetar o bem-estar emocional e a qualidade de vida.
- Pessoas com hemofilia podem enfrentar ansiedade, estresse e preocupações sobre lesões e tratamentos.
- Limitações na Atividade Diária:
- A dor crônica e a rigidez nas articulações podem dificultar atividades cotidianas, como caminhar, subir escadas ou praticar esportes.
- A necessidade de evitar situações de risco também pode limitar a participação em certas atividades sociais.
- Tratamento e Cuidados Constantes:
- O tratamento envolve a reposição dos fatores de coagulação deficientes, o que requer administração regular de medicamentos.
- Consultas médicas frequentes, exames e terapias são necessários para prevenir sangramentos e complicações.
Tratamento
Se os sintomas sugerirem sangramento, o tratamento deve começar imediatamente, mesmo antes de estarem completos os testes de diagnóstico. Por exemplo, o tratamento para cefaleia que pode indicar hemorragia intracraniana deve começar antes de o exame por TC estar concluído.
A reposição do fator deficiente é o tratamento primário. Na hemofilia A, o nível mínimo do fator VIII (i.e., o nível do fator VIII medido imediatamente antes da próxima dose) deve ser elevado para 50% do normal para evitar sangramento após extração de dente ou para interromper hemorragia articular incipiente 50 a 80% do normal para sangramento articular ou intramuscular grave 100% do normal antes de cirurgia grande ou em caso de sangramento intracraniano, intracardíaco ou potencialmente fatal.
As infusões repetidas da dose inicial calculada devem ser administradas a cada 8 a 12 horas para manter os níveis entre 50% e 80% do normal durante 7 a 14 dias após cirurgia grande ou hemorragia com risco de morte. Depois de uma neurocirurgia ou cirurgia cardíaca, deve-se manter o nível mínimo do fator em 100% do normal durante os primeiros 3 dias após a cirurgia. Entre 4 a 7 dias de pós-operatório, o nível mínimo alvo é de 80 a 100%, seguido de um alvo de 50 a 80% entre 8 e 14 dias de pós-operatório. Depois de um sangramento intracraniano, o nível mínimo do fator deve ser mantido em 100% do normal durante os primeiros 7 dias. O alvo deve ser de 80 a 100% para os dias 8 a 14 e 50 a 80% para os dias 15 a 21. Depois de sangramento intracraniano, recomenda-se a profilaxia do fator por toda a vida. Cada U/kg do fator VIII aumenta o nível deste em cerca de 2%. Dessa maneira, para elevar o nível de 0 para 50%, são necessárias aproximadamente 25 U/kg.
O fator VIII pode ser administrado como concentrado purificado de fator VIII derivado do plasma, que é obtido de doadores múltiplos. Ele é então submetido à inativação viral, mas pode não eliminar o parvovírus ou o vírus da hepatite A. O fator VIII recombinante é livre de vírus e é normalmente preferido.
Na hemofilia B, o fator IX pode ser administrado como um produto viral desativado purificado ou recombinante a cada 12 a 24 horas. Os níveis-alvo de correção do fator são os mesmos da hemofilia A. Contudo, para atingi-los, a dose deve ser maior do que em hemofilia A porque o fator IX é menor que o fator VIII e, em contraposição ao fator VIII, tem distribuição extravascular extensa. Cada unidade/kg de fator IX aumenta o nível de fator IX por 1%. Pela sua distribuição extravascular, a dose inicial de fator IX geralmente é 25% maior que as doses subsequentes.
O plasma fresco congelado contém o fator VIII e o fator IX. Contudo, a menos que seja efetuada a troca plasmática total, geralmente ele não pode ser administrado em quantidade suficiente aos pacientes com hemofilia grave para aumentar as concentrações do fator VIII ou o fator IX a níveis que evitem ou controlem o sangramento. O plasma fresco congelado deve, portanto, ser utilizado apenas se os concentrados de fator não estiverem disponíveis.
O crioprecipitado contém o fator VIII e pode ser utilizado como um produto de substituição se os concentrados do fator VIII não estiverem disponíveis. Cada unidade de crioprecipitado contém 80 unidades de fator VIII. Como o plasma e o crioprecipitado geralmente não são inativados por vírus, esses hemoderivados devem ser utilizados apenas em emergências quando os concentrados de fator não estão disponíveis.
Uma proteína recombinante de fusão do fator Fc-VIII (1), uma proteína recombinante de fusão do fator IX-Fc (2), um fator VIII recombinante ligado ao polietilenoglicol (3) e um fator IX peguilado (4) todos têm tempos de sobrevida in vivo mais prolongado e foi descrito que controlam o sangramento na hemofilia A e B.
Na hemofilia A, o emicizumabe, um anticorpo monoclonal humanizado recombinante biespecífico que se liga tanto ao fator IX como ao fator X, e os liga a um complexo ativo do tipo fator X-ase que elimina a necessidade do fator VIII, é um tratamento eficaz (5). O emicizumabe é administrado como uma injeção subcutânea a cada 1, 2 ou 4 semanas. Tem uma meia-vida de 28 dias.
Agentes terapêuticos em fase de ensaios clínicos para hemofilia A e B são o fitusiran e o concizumabe (6, 7). O fitusiran é um pequeno RNA inibitório que elimina a produção da proteína anticoagulante natural, a antitrombina. O concizumabe é um anticorpo monoclonal humanizado que bloqueia o inibidor da via do fator tecidual (IVFT), outra proteína natural anticoagulante e, aumenta a produção de trombina na hemofilia A e B.
Demonstrou-se que a terapia gênica utilizando vetores de vírus adenoassociado (AAV) resulta em sustentação do fator VIII e expressão do fator IX (8, 9). Recentemente foi disponibilizado um produto da terapia gênica baseada em vetores de AAV para a hemofilia B. Atualmente está sendo estudada a terapia gênica baseada em vetores de AAV para a hemofilia A (10).
Tanto o FVW como o fator VIII são armazenados nos corpos de Weibel-Palade das células endoteliais, e secretados em resposta à estimulação das células endoteliais (11). A terapia adjuvante da hemofilia A leve pode, portanto, conter os estímulos in vivo das células endoteliais do paciente com o análogo sintético da vasopressina DDAVP (deamino-D-argininavasopressina, também conhecido como desmopressina). Como descrito para doença de von Willebrand, a desmopressina pode aumentar temporariamente os níveis do fator VIII. A resposta do paciente deve ser testada antes de a desmopressina ser utilizada terapeuticamente. Seu uso após trauma menor ou antes de cirurgia dentária eletiva pode tornar desnecessária a terapia de reposição. A desmopressina deve ser utilizada apenas para pacientes com hemofilia A leve (níveis do fator VIII basal ≥ 5%) que tiverem demonstrado responsividade.
Um agente antifibrinolítico (ácido aminocaproico ou ácido tranexâmico) também pode ser utilizado como uma terapia adjunta na hemofilia A ou B para suprimir a fibrinólise e prevenir a hemorragia tardia após extração dental ou outro trauma da mucosa orofaríngea (p. ex., laceração da língua).
Intervenções multidisciplinares e equipe de tratamento
- Administração de Fatores de Coagulação:
- Profilaxia: Administração regular de fatores de coagulação para prevenir sangramentos.
- Tratamento sob demanda: Administração de fatores em resposta a um episódio de sangramento.
- Reabilitação Física:
- Exercícios de fortalecimento: Para manter a força muscular e a estabilidade articular.
- Terapia de mobilidade: Para melhorar a amplitude de movimento e a funcionalidade das articulações afetadas.
- Uso de dispositivos ortopédicos: Como órteses, para apoiar articulações danificadas.
- Cuidados Odontológicos:
- Profilaxia: Manutenção de boa higiene oral para evitar doenças gengivais e cáries.
- Tratamento com fatores de coagulação antes de procedimentos invasivos: Para minimizar o
risco de sangramento.
- Apoio Psicológico e Social:
- Terapia individual e em grupo: Para lidar com o estresse, ansiedade e depressão.
- Apoio educacional: Para ajudar pacientes e famílias a entenderem a doença e o tratamento.
- Aconselhamento social: Para ajudar com questões de seguro, acesso a cuidados de saúde e
recursos comunitários.
- Educação do Paciente e da Família:
- Reconhecimento e manejo de episódios de sangramento: Educação sobre sinais de sangramento interno e externo e a importância da intervenção precoce.
- Treinamento em administração de fatores de coagulação: Para que possam realizar infusões em casa.
- Monitoramento e Avaliação:
- Exames laboratoriais regulares: Para monitorar os níveis de fator de coagulação e ajustar o tratamento conforme necessário.
- Avaliações ortopédicas periódicas: Para identificar e tratar precocemente danos articulares.
Perspectivas de pacientes e famílias afetadas
O acompanhamento dos pacientes portadores de hemofilia é feito por uma equipe multiprofissional. Ao realizar o diagnóstico é importante que os profissionais estejam aptos para acolher o paciente, mas também munidos de uma capacidade de comunicação com os familiares. Afinal de contas, é a família a principal aliada, logo, aconselhar, orientar e transmitir confiança é importante durante o processo de reorganização familiar em um novo cenário de saúde-doença.
A natural necessidade de informações sobre a doença deve ser satisfeita de forma clara e compatível com o grau de compreensão dos envolvidos. Deve ser ressaltado que as orientações para pais de bebês acometidos por essas doenças devem seguir as rotinas da puericultura, não sendo necessário berço ou brinquedos especiais. Como qualquer outra criança, o bebê necessita crescer em um ambiente seguro. Desde o início do acompanhamento, os pais devem ser estimulados ao convívio social e familiar, permitindo a natural evolução da vida escolar e profissional de seu filho. Na infância, e principalmente na adolescência e fase adulta, deve-se reforçar e estimular a prática de esportes com orientação adequada. Como exemplos, deve-se estimular a prática de natação, ginástica, ciclismo, caminhada, musculação e fazer orientação adequada sobre medidas de prevenção e controle de traumas.
Todos os pacientes com hemofilia e outras coagulopatias hereditárias devem estar registrados em um CTH e serem cadastrados no registro nacional das coagulopatias hereditárias, o Hemovida WebCoagulopatias, desenvolvido e gerenciado pelo Ministério da Saúde. Os dados cadastrais, clínicos, atualizações laboratoriais, assim como consumo, data e motivo do uso dos fatores e medicamentos disponibilizados pelo programa de Coagulopatias Hereditárias do Ministério da Saúde, devem ser incluídos e constantemente atualizados nesse sistema. Pacientes em programas especiais, como profilaxia primária e IT, devem fornecer dados específicos desses programas, que devem ser inseridos oficialmente no sistema nacional Hemovida WebCoagulopatias. Estes são cruciais para o acompanhamento de ações, vigilância e manutenção de políticas de saúde adequadas ao programa assistencial desses pacientes.
Portanto, a interação profissional e familiar além de ser importante para o próprio paciente é também necessária para a estabilidade emocional dos indivíduos, pois quanto mais informados os indivíduos estão mais saberão como agir em um situação de crise. Isso beneficia o melhor prognóstico do indivíduo.
Referências
AVENIDA, A. et al. AS BASES MOLECULARES DA HEMOFILIA A. [s.l: s.n.]. Disponível em: www.scielo.br/j/ramb/a/GjwBJmLtxsR7NJvPWdCkVfD/?format=pdf&lang=pt
BRUNA, Maria Helena Varella. Portal Drauzio Varella. Disponível em: www.drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/hemofilia/. Acesso em: 12 de junho de 2024.
Hemofilia. Rededorsaoluiz. Disponível em: www.rededorsaoluiz.com.br/doencas/hemofilia. Acesso em: 12 de junho de 2024.
MOAKE, J. L. Hemofilia. Disponível em: www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/hematologia-e-oncologia/dist%C3%BArbios-de-coagula%C3%A7%C3%A3o/hemofilia
STREIFF, Michael B. Hemofilia. Johns Hopkins University School of Medicine. Disponível em: www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/hematologia-e-oncologia/distúrbios-de-coagulação/hemofilia. Acesso em: 12 de junho de 2024.